No chamado jogo da vida: vale tudo? Ou será que o limite é o quanto vale uma consciência tranquila?
Acabei de assistir “A Sociedade da Neve“, produção uruguaia lançada em 2023. O filme narra a tragédia e a luta de sobreviventes de um voo partindo do Uruguai, com destino ao Chile, que colide com uma geleira nos Andes em 1972. Apenas 29 dos 45 passageiros sobreviveram ao acidente. E, no final, apenas 16 continuam vivos e são resgatados.
Trata-se de um drama real, sombrio e, ao mesmo tempo, comovente, que mistura vontade de viver com a necessidade de lidar com a dura realidade da morte. Presos no meio do nada e cercados por geleiras intransponíveis, aqueles que ficam precisam tomar decisões. Para manterem seus corpos vivos, os 16 sobreviventes decidem se alimentar com os restos mortais de seus amigos e conhecidos.
Essa é a história real, isso é o que aconteceu. Porém, a reflexão que me vem à mente e, sobretudo, preenche meu coração, é construída com uma pergunta que tem me perseguido nesses últimos tempos. Vale tudo? Vale tudo mesmo para atingir um objetivo?
Comovido com a tragédia desses jovens uruguaios dos idos de 1972, me vejo tomado pela inquietação, pela percepção perturbadora dos caminhos pelos quais a vida, por vezes, nos conduz e sobre as escolhas que precisamos fazer.
Vale tudo para conseguir um emprego e se manter nele? Vale tudo para manter uma relação afetiva? Vale tudo para acumular dinheiro? Vale tudo para defender um país? Vale tudo para ganhar uma eleição? Vale tudo para manter o poder, após a eleição? Vale tudo para continuar vivo? Vale tudo? Vale ser desleal, possessivo, ganancioso? Vale cometer genocídio para defender um pedaço de terra que chamamos de país? Vale qualquer tipo de acordo, ainda que espúrio, para ganhar uma eleição e se manter no poder? Vale comer carne humana de amigos e conhecidos para manter seu próprio corpo vivo?
O drama desses jovens uruguaios tocou meu coração e inundou minha alma com essa enxurrada de indagações. Na época com idade média de 21 anos, os 16 sobreviventes continuam vivos até hoje, talvez eles próprios carregando também essas indagações.
Então, meu coração me diz, com um esforço honesto de evitar juízo de valor, “Não, não vale tudo!”. Não vou deixar de ser socialista para combater o capitalismo, não vou usar as armas do fascismo para lutar contra o fascismo, não vou compactuar com a perfídia, com a sordidez do jogo político, não seguirei pelos caminhos da vida praticando canibalismo existencial contra terceiros ou, pior, contra mim mesmo. Quero botar a cabeça no travesseiro e dormir com alguma tranquilidade, seguindo na luta.
No filme, a história é narrada por um dos jovens que não sobreviveram. Essa construção de foco narrativo denota uma certa ironia, é emblemática.
Imagem: Jorge Marques