Na ditadura militar o povo simples vivia entre o medo e a luta pela vida

Um menino de 8 anos não podia entender nada. Um menino de 8 anos só entendia de brincar de bola. Bola de gude ou de futebol, pouco importava. Só entendia de nadar nos rios lamacentos daquele antigo bairro, naquela antiga e distante época. Era apenas uma criança e não entendia os porquês da vida: o porquê da miséria, o porquê das doenças de todos os tipos, o porquê da pouca comida, o porquê da dificuldade no aprendizado. Só sabia que precisava ir à escola e, depois, voltar para casa sem nada aprender, sem nada entender. Sua maior felicidade era brincar no mato, junto com o resto da molecada, como bicho livre e solto na vida.

Na televisão, acontecia a Copa, com transmissão colorida e tudo mais, com a seleção canarinho dizendo pra todo mundo ir junto, pra frente com o resto do Brasil. Era lindo aquele colorido, de verde e amarelo, com todos cantando, gritando e comemorando quando alguém fazia um gol. Mas o que era Copa, mesmo? O que era seleção? Aquilo tudo era o quê? O menino não sabia, mas gostava de se divertir junto e participar daquela alegria, daquela zoada toda.

O milagre brasileiro acontecia, enquanto o burburinho das pessoas com medo, nas ruas, que falavam da repressão, do movimento estudantil sendo duramente reprimido, de greves, de metalúrgicos, falavam do embaixador que foi sequestrado e de pessoas sendo metralhadas nas ruas. Os jornais noticiavam o terrorismo, mas o burburinho amedrontado das ruas sentia na pele, no instinto, uma realidade bem diferente. Mas, tal como o menino que só entendia de brincar, o burburinho pouco ou nada entendia e, assim, a vida e o tempo iam escorrendo pelo ralo, dentro de uma rotina que misturava opressão com alienação.

Os pais procuravam emprego e não encontravam, as mães ficavam viúvas e viravam diaristas nas casas de “gente bem”. Os preços eram altos, os salários eram baixos, mas o rádio, a TV e os jornais juravam, de pé junto, que o milagre era brasileiro e que a Copa do Mundo era nossa.

O menino continuou brincando. O burburinho das ruas continuou amedrontado. Os pais continuaram sem emprego. As mães, cada vez mais, viúvas e com filhos pra criar. Então, um dia, o jornal deu que um preto terrorista, reagindo a uma abordagem policial a tiros, foi morto na Alameda Casa Branca. O menino estava jogando bola, o burburinho das ruas ficou com medo e não entendeu nada.

E assim a vida seguiu, até que o menino foi virando gente adulta e entendeu que o preto morto na Alameda Casa Branca foi um grande herói nacional, que entregou o próprio sangue para livrar todos os meninos, todos os pais e todas as mães da vida de opressão do burburinho amedrontado das ruas.

Foi quando a esperança floresceu, até que, ali na frente, os ventos nefandos do passado voltariam a soprar, mas por pouco tempo, tempo suficiente para demonstrar que o burburinho das ruas, amedrontado ou não, é força e não limitação.

Imagem: Jorge Marques

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Escrito por Expresso Periférico

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